Luiz Paulo e Diogo

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Nunca nos separamos, mas também não fazemos da longevidade do relacionamento uma obrigação. O que sempre foi muito claro para nós é a vontade de estarmos juntos. Sabemos que não existe parceiro perfeito. Nós não nascemos um para o outro, a gente se escolheu.

Com o tempo, você introjeta o fato de que a sociedade te vê de forma negativa; em alguns momentos talvez nem veja, mas você tem essa sensação. A mentalidade está começando a mudar, mas não adianta querer chegar numa família tradicional, cristã, e empurrar quebras de paradigmas goela abaixo. É preciso tentar mudar o modo como eles enxergam a homossexualidade. Mostrar que a orientação sexual não define a pessoa em si. Escutamos coisas do tipo “Eu gosto do Luiz e do Diogo porque eles não são tão afeminados”. Aí você espera um pouco e fala “Olha, tem gay que é afeminado, e não há problema nenhum nisso”. Poder desconstruir verdades sociais é uma oportunidade que você só tem porque conquistou aquele espaço. É como se fosse uma microrrevolução, um processo revolucionário quotidiano.

Tem aquela listinha, o “check list gay”: vai gostar de cabelo, de moda, de falar mal dos outros, fazer fofoca. Eu sou exatamente o oposto! Eu não gosto de moda nem de cabelo, não falo mal das pessoas, não sei nada sobre esse mundo dos famosos, não gosto de ver novela. E isso se relaciona com várias outras coisas da nossa sociedade. As pessoas esperam de um gay que ele consuma certas coisas, que se vista de certa forma, que aja de certa maneira, mas não é a nossa sexualidade que define o nosso gosto e o nosso comportamento.

A homofobia está se tornando velada, assim como aconteceu com o racismo. Isso é perigoso, porque a gente passou de uma etapa muito mais hard e está entrando numa mais soft, em que é mais difícil combater o preconceito. Algo parecido com o que acontece com as mulheres em relação ao machismo.

Recentemente um amigo nosso, de 24 anos, se matou. Desde que se assumiu, muito novo, sofreu muito preconceito, apanhou, foi humilhado. O pai dele era muito homofóbico. Depois, entrou num período de “aceitação”. Só que, muitas vezes, essa “aceitação”, essa tolerância, é ódio administrado, não tem nada de aceitação. Talvez o histórico de rejeição tenha influenciado no suicídio. Na época, ele foi à Vara da Infância e da Juventude reclamar do pai e a assistente social não sabia nem o que era homofobia. Muita coisa mudou nos últimos dez anos.

Há uma onda de ódio crescente que me preocupa muito. Nas redes sociais, as pessoas decidem que são juízes… Dói muito ligar a TV e ouvir um candidato à presidência falando “Ninguém reproduz pelo aparelho excretor”. Eu cancelei a assinatura do jornal porque esse tipo de coisa me incomodava, fazia mal, eu ficava deprimido. É muito chocante escutar alguém falando o que é uma família, e depois eu chegar em casa e olhar para mim e para o Diogo e pensar: como alguém pode dizer que isso não é uma família? Somos tão felizes juntos.

Luiz Paulo Labrego (professor) e Diogo Matos (economista), juntos desde 2002.

Marah e Samantha

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Eu enfrentei algumas dificuldades no ambiente familiar. Aconteceu há bastante tempo, eu tinha 17 anos, hoje tenho 36. Imagina isso há décadas, a discussão ainda era muito embrionária. Minha mãe achou uma cartinha da namorada que era uma suposta amiga e pirou, enlouqueceu. Ainda havia aquela relação de dependência, eu morava com meus pais. Ela ficou uns três meses no luto, desesperada. Mas tive o apoio da minha família, uma tia que era lésbica também ajudou muito. Consegui assim, no diálogo, na conversa, porque minha mãe era muito liberal para lidar com outras pessoas, com o vizinho que era gay, a irmã dela, com eles não havia nenhum problema, mas quando ela descobriu que a própria filha era lésbica, ficou desesperada.

Já eu nunca tive dificuldade alguma porque, na fase da minha vida em que me assumi gay, já estava muito bem resolvida, não devia satisfação a ninguém, já era livre. Eu tinha 29 anos e estava tão feliz com aquilo que pouco me importava com o que as pessoas iriam falar. Minha felicidade estava acima de qualquer coisa. Contei para a família inteira e todo mundo achou aquilo legal, divertido, louco. Nunca precisei esconder, apenas dei a notícia para cada pessoa em seu momento, porque entendo que há um desafio a vencer. E entendo a importância de ocupar nosso lugar, nosso espaço nesta sociedade que é ainda tão preconceituosa. É uma luta, mas é uma vitória também. Só de eu poder andar com ela de mãos dadas na rua já é uma vitória, mesmo sabendo que de repente pode aparecer alguém para nos insultar.

Parte desses conflitos existe porque essas famílias, como a mãe da Samantha e outras mães de amigas que acompanhei, não tiveram uma educação sexual. Os pais deles não disseram “Olha, você pode casar com um homem ou, se quiser, também pode casar com uma mulher, ou…”. Não, eles não foram preparados para isso. Em uma cultura muito católica, boa parte das famílias foi educada num regime que diz que a mulher é para servir o homem. Muitas pessoas sofrem com suas mães e pais por questão de aceitação, mas a culpa não é deles. Eles apenas não foram orientados. Na cabeça deles, o que está certo é o que foi dito na igreja, na escola, dentro de casa. Eu penso que esse tipo de sofrimento vai se diluir com o tempo. Já tem uma nova geração de pais que orientam seus filhos de forma diferente, já existem novas famílias surgindo, está cada vez mais claro este resgate em ser e assumir aquilo que você é. Este sofrimento tem data para acabar, é um processo que está acelerado.

Tem coisas que passam como sendo utopia. Utopia não é uma forma de se iludir, mas sim “o que há a se conquistar”. Há muitos anos, quando a gente falava de a família entender, compreender, as pessoas diziam “Mas isso é utopia, você está sonhando com algo que não vai existir”. E olha aí a utopia virando realidade. O utópico é o que eu sonho e posso tornar realidade. É o que nos põe em movimento.

Marah Silva (estilista) e Samanta Guedes (assistente social), juntas desde 2010.

Cláudia e Virgínia

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+ PEDRO AUGUSTO

Desde o início da nossa relação, a Cláudia deixou claro que queria muito ter um filho. E, quando chegou a hora de levar o assunto mais a sério, começamos a planejar: ter uma casa mais adequada, com espaço para a criança brincar, fazer uma poupança, registrar o pacto de união estável (na época ainda não era legalmente reconhecido como núcleo familiar, mas mesmo assim fizemos questão de fazer).

Quando decidimos entrar com o processo de habilitação para adoção, foi muito difícil, simplesmente não andava; demorou um ano para conseguirmos dar entrada, mesmo com ajuda de uma advogada. Quando finalmente começou a andar, foi muito burocrático. Tínhamos que apresentar documentos sem fim, de comprovantes de emprego e união duradoura a atestados de saúde física e mental. Mas, como já tínhamos tudo planejado, conseguimos levantar a papelada sem dificuldades. Para os padrões brasileiros, até que o processo se desenrolou rápido: ao final de dois anos e meio, o Pedro Augusto chegou.

Nós o encontramos com 20 dias de vida, dormindo no berçário da vara de infância. Ele tinha um sinal bem no meio da testa (hoje já desapareceu), brincamos que ele veio com o sinal para que pudéssemos encontrá-lo. E essa acabou virando a sua história de origem; quando ele nos perguntou pela primeira vez de que barriga ele nasceu, contamos que, como não podíamos ter filhos da nossa própria barriga, ele achou uma forma de vir e nos avisar: arranjou uma barriga emprestada e veio com um sinal para que pudéssemos reconhecê-lo. Ele veio logo para casa, mas ainda precisamos de mais dois anos para concluir o processo de adoção e para conseguir a certidão de nascimento com nossos nomes. Só então relaxamos, porque a situação da guarda provisória é muito angustiante. Imagina essa criança que você já ama, para quem você e sua família são a única referência, mas ainda há o risco de alguém chegar e tirá-la de você… Só quando saiu a guarda definitiva foi que ficamos em paz.

Nunca tivemos dificuldade de assumir nossa relação publicamente. Em primeiro lugar porque nos conhecemos numa idade mais madura, em que se esconder já não fazia mais sentido. Depois porque, quando você tem filho, isso se torna ainda mais necessário. Você tem que ter segurança e tem que passar essa segurança para ele. Talvez algum dia ele também venha a sofrer algum preconceito. Como você vai poder ensinar valores para o seu filho se você vive uma vida falsa? Então, isso era uma condição sine qua non para nós.

No ambiente profissional, acho que tivemos sorte de trabalhar em multinacionais, que estão muito à frente das empresas brasileiras em relação a proteção e benefícios no campo da diversidade. A empresa da Cláudia foi pioneira na implantação desse tipo de programa no Brasil. Quando o Pedro Augusto chegou, já no dia seguinte conseguimos a licença maternidade e ele foi cadastrado para ter os benefícios antes mesmo de sair a guarda definitiva.

Cláudia Nunes (analista de sistemas) e Virgínia Almeida (psicóloga), juntas desde 2003.

Luciane e Elis

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Para mim não foi muito complicado porque eu transitava entre relações com homens e com mulheres. O mais engraçado é que a primeira situação de preconceito que tive de enfrentar não foi em relação ao fato de sair com mulheres, mas de ter homens também. As meninas gays falavam assim: “Por que você está saindo com homens, se já sai com mulheres?”.

Eu nunca gostei de misturar o espaço profissional com o que acontecia na minha vida pessoal. Acho que são coisas que não precisam se misturar, embora ambas façam parte da sua vida. Se alguém do trabalho perguntar se você é gay, por que colocar isso debaixo do tapete? Não é um processo simples para ninguém, porque a gente vive numa sociedade conservadora. Há pequenos nichos onde você pode viver sua sexualidade com tranquilidade, mas isso não é a regra social. Mesmo sabendo que não é fácil, acho que é preciso dar visibilidade, senão vai ser sempre uma coisa escondida e essa condição de não visibilidade é que gera mais preconceito. Imagino que possa ser mais simples para essa geração atual de adolescentes, que coloca na internet fotos com namorados e namoradas já no início da descoberta de sua sexualidade.

Eu vim a ter contato mais profundo com o Brasil há pouco tempo, num trabalho com trabalhadoras rurais integrantes de um movimento feminista no Nordeste. Nós as ensinamos a filmar para que elas mesmas pudessem mostrar seu movimento e contar sua história. Aí tive chance de descobrir a intensidade com que as coisas estão rolando no país. Conheci mulheres que vivem em lugares pequenininhos e que têm uma militância feminista, estão discutindo gênero, discutindo sexualidade. Trabalhadoras rurais que são gays, estão conectadas à internet, usam WhatsApp para se mobilizarem, usam as redes sociais para fazerem manifestações públicas… Isso é incrível, porque quando se fica neste circuito mais urbano, você pensa que tudo está acontecendo só nas cidades, especialmente nas cidades grandes, e na verdade nós temos um país em que as coisas estão rolando nos lugares mais distantes… Isso também tem pouca visibilidade.

Agora elas vão fazer uma das maiores marchas do país, que é a Marcha das Margaridas. Milhares de mulheres em Brasília, vindas do país inteiro. É um movimento feminista que abarca vários temas: violência contra as mulheres, educação política, as questões de gênero, e aí entra a questão da homossexualidade também. Quando uma mulher sai da sua região para ir para o encontro do MMTR, que é o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste, na comunidade dela os vizinhos costumam perguntar “Mas como assim, você vai deixar seu marido, seus filhos, para ir a um encontro feminista? Vai fazer o quê lá? Vai deixar de trabalhar e ir se divertir com outras mulheres?” Aquela visão clássica e preconceituosa que se tem do movimento feminista.

Luciane Quoos Conte (professora) e Elis Galvão (socióloga), juntas desde 2007.

Jaqueline e Joana

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Joana já passou por isso, eu não. Ela já passou pela situação de estar com uma namorada, dar um beijo e ser expulsa do lugar. Eu nunca passei, mas pensava “E se eu passar, o que vou fazer?” Dizer que ela é minha namorada e apelar para os direitos humanos? É muito mais importante tirar uma certidão de casamento e poder falar “Somos casadas. Ela é minha esposa. A justiça reconhece minha união e você tem que respeitá-la também”. Isso foi um ponto muito importante para decidirmos nos casar oficialmente. O pai dela fez questão de mostrar para todo mundo que estávamos nos casando, não quis que fosse um casamento escondido, fez questão de fazer uma festa, de nos apresentar para a sociedade.

Para o casal heterossexual, o revolucionário é não casar, é só morar junto, abrir mão dessa coisa tão batida que é o casamento. Com a gente acontece o oposto: exercer o direito ao casamento civil, isso sim é revolucionário! É engraçado como os valores se invertem. É muito importante exercermos um direito que foi conquistado. Porque direito que não é exercido é direito perdido. Foi isso que nos moveu ao casamento civil e ao casamento religioso também, que aconteceu numa cerimônia budista.

Tanto é diferente que a minha mãe, que já sabia que eu saía com mulheres, que já tinha conhecido várias namoradas minhas desde que eu tinha 15 anos, quando eu falei para ela que nós íamos nos casar, ela surtou. Na festa de casamento, ficou chorando. Não eram lágrimas de alegria, eram de desespero. Tipo assim: não tem mais como ocultar, não tem mais como esconder da família, das outras pessoas… Quando perguntarem “Quem é aquela menina?”, não dá mais para falar “Ah, é uma amiga da minha filha”. Não, não é uma amiga, é a sua esposa, sua mulher.

E se em algum momento nós passarmos por uma dificuldade de saúde, quem vai entrar no quarto do hospital, sem problemas, seremos nós. Não vai haver aquela situação constrangedora do tipo “Quem é você? Você não pode entrar porque não é da família.”

Isso mexe com a cabeça das pessoas. A sociedade é machista. É muito importante a gente lutar pela mudança. É uma mudança cultural. Mas também é preciso ser generoso quando se percebe que existe alguém que não entendeu ainda – porque a forma como reagimos é o que a pessoa vai tomar para se transformar, para sair daquilo ou para se apegar àquilo cada vez mais. Por isso é importante acolher o que o outro ainda não entendeu, o que ele precisa entender. Eu mesma, quando me descobri gay, levei um tempo para me aceitar; quando tive a primeira namorada, pensava “Eu não sou gay, sou hetero, mas ela é uma pessoa especial”. Depois fui percebendo que não era bem assim. Se você mesma leva um tempo para se aceitar, para entender o que está acontecendo, acho que tem que dar um tempo para as outras pessoas também, para elas verem que é uma coisa normal, que ser gay não é nenhum bicho de sete cabeças.

Jaqueline Vasconcellos Carvalho (atriz) e Joana Vasconcellos Carvalho (professora de educação física), juntas desde 2013.

Léa e Malu

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+ PEU E PEDRINHO

As estatísticas são muito tristes. Um adolescente gay tem seis vezes mais chances de tentar o suicídio do que outro adolescente. Isso é grave demais. Como professora, consigo perceber no meu cotidiano como a homofobia e a transfobia são danosas no ambiente escolar. Minha militância passa por esse lugar, de lutar contra a exclusão homofóbica e transfóbica na escola.

O nível de escolaridade das travestis é muito baixo. Quando elas começam a entender, a construir uma identidade de gênero, com onze, doze, treze anos, é quando a escola começa a rejeitá-las, é quando a família as joga na rua. Quem as acolhe? Sem escolaridade, como é que elas vão trabalhar? Como vão construir um itinerário profissional? Isso é gravíssimo na nossa sociedade e precisa ser discutido a fundo.

Nossa editora, a Metanoia, é especializada em literatura homoafetiva e teologia inclusiva. Nós defendemos a teologia inclusiva, em primeiro lugar, porque é escrita por pessoas muito sérias, por teólogos que estudam o contexto da bíblia dentro da antropologia, da sociologia, da psicologia, enfim, que usam ferramentas que a ciência fornece para desconstruir o discurso homofóbico. Ela também é conhecida como “teologia queer”.

Qual seu grande mérito? É que ela usa a linguagem teológica, a linguagem da crença – que não é a mesma linguagem da ciência. Quando você encontra um fundamentalista raivoso e usa um argumento científico (como já vimos em vários debates), o diálogo não acontece. Porque a linguagem dele é a teológica, a linguagem mitológica da bíblia. O imaginário dos fundamentalistas religiosos é totalmente diferente do ideário da ciência. Eles caminham paralelamente. Mas se você estuda teologia inclusiva e aprende a desconstruir os argumentos da exclusão e dos preconceitos que se baseiam na literalidade da bíblia, os fundamentalistas perdem seus argumentos. Porque eles não estudam, eles só repetem o que leem. Eles não vão ao contexto histórico, não sabem fazer uma leitura crítica.

Nós somos militantes. Na passeata, na caminhada pela liberdade religiosa, nós estamos lá. Na parada gay, na caminhada de visibilidade lésbica, estamos lá também e por aí vai. Nós temos um papel político. A gente acredita que nossos livros podem abrandar esses discursos calorosos em que as pessoas usam argumentos da religião para excluir outras pessoas. Na verdade, nossa literatura desconstrói esses discursos; a partir daí fica muito mais fácil conversar, construir pontes com as diferenças. Partindo do discurso teológico inclusivo, em vez de você construir muros, você constrói pontes entre as pessoas. Nós lutamos por isso, por uma escola inclusiva, uma Igreja inclusiva, uma sociedade inclusiva.

Léa Carvalho (professora e produtora editorial) e Maria Luiza Santos (designer gráfico), juntas desde 1998.

Claudia e Flavia

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Quando a gente se conheceu, já na segunda vez que saímos, fomos tomar um vinho no Empório Santa Fé e fomos muito maltratadas. Estávamos naquele início de namoro, trocando carinho, e o casal da mesa ao lado se sentiu incomodado, ou agredido, e falou com o maitre. Daí a pouco ele veio até a mesa e disse “Vocês podem se conter? Podem aprender a se controlar?”, entre outras coisas… Nossa, foi o maior baixo astral! Eu fiquei com vontade de morrer, mas a Flavia reagiu: “O senhor sabe que isso é crime, não sabe?”. Acabou nossa noite, pagamos a conta e fomos embora. Para piorar a situação, na hora que estávamos saindo, o dono veio todo grosseiro dizendo “Isso aqui é um lugar de família” e mais não sei o quê, até a mulher dele veio meio que aparando… Eu não me contive e falei para ela “Deve ser muito difícil ser casada com um senhor desses!”. Ele ficou muito puto e parecia que ia bater na gente. Nós saímos. Isso foi numa sexta-feira; passamos mais dois dias com aquela sensação ruim e, então, concordamos que era preciso fazer algo.

Na época, ainda funcionava a 9ª DP ali no Catete. Fomos lá fazer um registro de ocorrência. Eu já cheguei ao balcão falando para o policial “Quero fazer uma denúncia porque fomos vítimas de homofobia”. Aí o cara ficou todo perturbado, “Não sei o que fazer, não posso fazer nada”. Nós insistimos: “Quer dizer que viemos aqui para registrar uma ocorrência e não seremos atendidas?”. O cara teve que engolir em seco e falou com um tal inspetor Fernando, que foi quem resolveu, que chegou e falou “Vamos tentar resolver essa coisa, mas vocês vão ter que fazer uma acareação.” Foi uma cena! A gente teve que voltar ao restaurante dentro da viatura da polícia, de sirene ligada, na contramão. O carro parou na porta, foi horrível. Entramos e identificamos o maitre, “Foi ele!”. O dono não estava ou se escondeu, e a gente acabou levando o maitre para a delegacia. O cara só pôde pegar os documentos e entrar na viatura. Aí eles acionaram o advogado deles (que era o filho do dono), ele chegou lá gritando “Não fala nada! Não aconteceu nada!”, e a gente assistindo àquela cena. O inspetor Fernando colocou ordem: “Você cala a boca! Ponha-se daqui para fora! As meninas chegaram aqui no maior respeito. Você está pensando que isso aqui é o quê? Isso aqui é uma delegacia!” Foi uma baixaria completa…

E então fizemos o registro de ocorrência. Aliás, foi a primeira vez que vimos nossos nomes escritos como namoradas… Num registro de ocorrência! Se estivéssemos nos estapeando, provavelmente estariam rindo, não fariam nada, com certeza pensariam “É briga de mulher, devem estar brigando por causa de homem, depois se ajeitam”. Nossa relação já começou assim, com a gente sendo empurrada para batalhar pelo direito de existir como pessoas que trocam afeto em público.

Claudia Holanda (artista, jornalista, pesquisadora em som e música) e Flavia Meireles (artista, professora e pesquisadora em dança), juntas desde 2011.

Roberta e Gisa

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Nós nunca colocamos as coisas de forma rotulada: “é um casal gay, não é um casal gay”, não existe isso. A resposta que a gente dá para a sociedade são as nossas atitudes. Quase todo mundo acha que gay é à margem da sociedade, meio delinquente, drogado, corrupto, depravado, promíscuo, não sei mais o quê. Aí, de repente, vê duas pessoas caretas, que trabalham à beça, e não entende nada.

A gente acorda todo dia às cinco, seis horas da manhã, ganha nosso sustento, vive conforme nossas condições; o que conseguimos na vida foi porque batalhamos para ter e continuamos batalhando para melhorar mais ainda. E é isso. Essa é a resposta. É assim que a gente responde: com atitude. Enquanto o outro acha que eu sou uma depravada, uma promíscua, eu estou trabalhando, vivendo minha vida.

Mas tem coisas que me incomodam. As pessoas, quando olham um casal heterossexual, em geral não pensam como eles fazem sexo. Mas quando é um casal homossexual, a primeira coisa que vem à cabeça é a configuração na cama, tipo “quem é o homem, quem é a mulher”. Elas precisam perguntar “E aí, quem é o ativo? Quem é o passivo?”. O quê?! Não sei nem o que é isso! Já ouvi essa pergunta algumas vezes, inclusive na minha própria família, e acho grosseiro demais, no mínimo indiscreto. Como se só existisse isso, homem ativo / mulher passiva. Que falta de criatividade!

No casamento da minha irmã, nós entramos juntas como madrinhas. Houve certa tensão… A cerimonialista, incomodadíssima, queria até o último momento trocar os pares, pegar os primos. No final, eu já quase me dando por vencida, o noivo teve um ataque: “Vocês são nossas madrinhas e vão entrar juntas!”. E foi a primeira vez de verdade que aparecemos juntas para a família inteira, como um casal, não apenas como duas pessoas que moram juntas e que podem ser amigas. Foi um reconhecimento oficial, mesmo.

Quando recebi o convite para participar do Nomes do Amor, cogitei a hipótese de não participar por receio do que as pessoas diriam, que tipo de conceito, de preconceito, elas poderiam ter sobre nós. Mas, ao mesmo tempo, fiquei pensando que isso não poderia ser mais forte do que a minha personalidade, do que a minha vontade, a minha vida. Eu não estou fazendo nada de errado, muito pelo contrário. Estou trabalhando de forma digna e afirmando valores, coisas que eu acredito que sejam fundamentais para a construção de uma sociedade justa, com mais educação e cidadania.

Essa coisa de rótulo tem que terminar. Estamos falando de preconceito contra o gay, mas também contra o bi, contra o negro, contra o índio… Você tem que olhar para o ser o humano como uma pessoa, olhar os valores morais dele, o que ele faz, o que acrescenta. Acho que nossa luta é única, é por direitos humanos. Somos todos iguais.

Roberta Macedo (gerente de projetos sócio culturais) e Gisa Colombo (arquiteta), juntas desde 2000.

Adriana e Taciana

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Antes mesmo de registrar a união estável, já era estabelecido que a gente era um casal. A gente não namorou, nós nos casamos. Nos conhecemos no carnaval e ficamos juntas três dias; no quarto dia, quando ela ia embora, eu falei “Você quer casar comigo?”. Foi assim, de supetão. Eu não sabia se iria me arrepender depois, não sabia se ela iria aceitar, enfim… Ela me olhou e disse “Eu quero. Também não sei se vou me arrepender daqui a 15 dias, daqui a um mês, daqui a um ano…” E lá se vão 20 anos. Uma amiga que nos encontrou nesse dia, por acaso, jogando sinuca num bar, falou “Nossa, para uma quarta-feira de cinzas vocês estão com cara de terça-feira gorda!” E foi muito legal. A gente se casou e, logo, também nossas famílias se casaram. Todos os pais e irmãos, os meus e os dela, se dão muito bem. Desde pequenos, nossos sobrinhos e, mais recentemente, os sobrinhos-netos, frequentam nossa casa e convivem normalmente com o fato da tia Tá e tia Dri serem casadas.

Também entre os vizinhos, ou no trabalho, nunca nos faltaram aceitação nem acolhimento. Quando eu trabalhei numa escola estadual aqui no bairro, tive uma diretora que sonhava em conhecer minha casa. Isso ela só me confessou algum tempo depois que a convidei para um almoço. E ela disse “Adorei conhecer sua casa. Eu não imaginava que duas mulheres que vivem juntas tivessem uma casa tão bonitinha assim, com liquidificador, batedeira, tudo arrumadinho. Eu não fazia ideia que fosse uma casa tão normal”. As pessoas que nunca conviveram com isso fantasiam muito a respeito e acabam criando alguns fantasmas.

Eu acho que a família é a coisa mais importante que a gente tem. E quando são cultivados esses valores fundamentais, como o respeito, a amizade, o companheirismo, a cumplicidade de qualquer forma, de pai com filho, de irmão com irmão, de mulher com marido, de mulher com mulher, de professor com aluno, enfim, em relações diversas, quando há respeito, quando isso atravessa toda a sua existência, acho que tudo flui melhor.

Acima de tudo, antes de ser um casal de mulheres ou um casal de homens, é um casal. Nós somos um casal de pessoas que se amam, independente do sexo, e que deu certo em sua relação. Nós aprendemos a nos amar com o tempo. Aprendemos a nos amar de verdade. Eu acho que os valores passados pelas nossas famílias foram essenciais nesse nosso caminhar. O mais importante é você ter respeito pelas pessoas, ter amor. Uma vez eu perguntei para o meu pai, que é a pessoa que mais importa para mim, se ele gostaria que eu fosse casada com um cara. Ele me disse “Eu te amo e quero sua felicidade”. Então, o mais importante é isto: se houver respeito e amizade, em qualquer tipo de relação, tudo flui normalmente.

Adriana Cardoso (professora) e Taciana Tavares (advogada), juntas desde 1996.

Rodrigo e Gilberto

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+ PAULO HENRIQUE

Já vivemos algumas situações de racismo com o Paulo que nos incomodaram muito. Foram situações que, talvez, não tivessem acontecido se fosse pai negro e filho negro, pois nos identificariam como família. É um racismo muito focado nele e só acontece porque ainda somos muito racistas. Mas, se você pensar bem, não é só discriminação de raça, é uma questão de ainda não se ter percebido que hoje não se pode mais julgar se as pessoas são da mesma família só porque se parecem ou não. De repente, um cara japonês e uma mulher loura podem ter um filho negro, e isto é uma família.

Existe essa questão da configuração de família que a gente precisa brigar agora para mudar. Não pode mais ser do tipo “Ah, tem um narizinho igual ao da mãe, o cabelinho igual ao do pai”, não é mais isso. Nós estamos juntos, tem amor ali envolvido. Qualquer configuração que seja, é família. Não dá para julgar pelo físico, não.

Hoje vemos uma mudança lenta e gradual dos casais, o que chamam de “normatização da homossexualidade”. Eu não vejo nestes termos, pois têm uma conotação ruim, como se ser normal fosse ruim; há uma tendência a enquadrar as pessoas. A homossexualidade sempre foi subversiva, estava ligada aos guetos, à sexualidade, liberação, libertinagem, àquela coisa subversiva. E não tem coisa mais subversiva hoje em dia do que pegar uma criança e levá-la para uma festa infantil com dois pais. Tem um ar de normalidade, mas é subversivo enquanto o Brasil não for como a Suíça. A gente não é Suíça. Eu não estou querendo ser “normal”, estou querendo ser igual a todo mundo, ser reconhecido pela minha personalidade, pela minha história, minha família. Sem tentar explicar “como pode” essa família de dois homens querer ser normal!

A maioria dos nossos amigos não é gay. A minha rotina de vida não é uma rotina do “estilo de vida gay”. Eu não vou para a academia, não me meto em boate, não tenho essa coisa de só ter amigo gay. Desse “estilo” a gente pouco faz parte, porque nossa rotina é de trabalhador, ainda tem que arrumar a casa, fazer comida, levar nosso filho para a escola, para a natação… Tem que trabalhar, botar grana, pagar os mesmos impostos. E às vezes a conta está apertada, o salário não entrou…

Nós já passamos pela nossa fase de sair, curtir. Se você for pela primeira vez a uma boate gay, é uma coisa fantástica. Porque você percebe que há pessoas iguais a você e que fazem coisas que você faz, que você gosta, e são “normais“. É uma descoberta. Mas passa, como tudo na vida. Então você entra em outra fase. Inclusive essa fase do gay contestador misturado com essa questão sexual, hipersexualizada, hipermarginal, essa fase, essa estratégia, ela envelheceu também. A estratégia agora é outra. É entrar no sistema e subverter de dentro para fora. É mais inteligente, nossa onda agora é essa.

Rodrigo de Mello (corretor de imóveis) e Gilberto Scofield Junior (jornalista), juntos desde 2002.